Gosto de ilustrar livros com conteúdos e propostas literárias bem diferentes uma da outra. Acredito que este seja o aspecto mais fascinante do ato de ilustrar, e sem dúvida o maior desafio para o ilustrador. Em meu trabalho, sempre almejo que a interpretação que tenho do texto não seja a única. Procuro, sempre que possível, criar portas – verdadeiras passagens secretas para que as pessoas tenham as suas próprias e particulares visões. Preocupa-me, portanto, não condicionar em demasia o leitor. Penso que o ato de criação de imagens se origina não diretamente na palavra, mas no entre-palavras. Daí vem minha preocupação em criar para cada texto uma imagem adequada, que muitas vezes está de acordo, ou não, com meus gostos pessoais, ou com a minha visão de arte. Por isto, não tenho nenhuma intenção em ser reconhecido de um livro para outro. Eu substituiria em meu trabalho a palavra estilo por método de abordagem. O texto é a origem de tudo. É impossível ilustrar sem gostar de literatura. É impossível ilustrar sem gostar de ler.
Assim como o trabalho de um ator que interpreta vários papéis – e para tanto é necessário conceituar um laboratório para modelar dramaticamente seu personagem – vejo o ato de ilustrar como um processo de criação muito semelhante.
Aprofundando mais este conceito, que sedimenta e direciona o modo como vejo a ilustração, eu diria que – adotando conceitualmente no mecanismo da relação texto e imagem a ótica teatral, o método do teórico russo Konstantin Stanislavski, por exemplo – tal prática não seria conveniente para o ilustrador. Isto se deve ao princípio de incorporação incondicional e realista, proposto pelo teórico, do ator ao papel. Refletindo agora como ilustrador, esta incorporação, acima citada, sem dúvida poderia ocasionar uma fidelidade ao texto, quase uma imagem espelhar, mas isto seria irreal com relação à arte de ilustrar. Defendo, portanto, como necessário ao ilustrador um certo distanciamento crítico perante o texto.
Vejo o estilo como um mecanicismo unilateral, uma pré-adoção irrestrita do texto. Neste caso, o ilustrador já chega com o seu laboratório pessoal pronto a ser usado, independente de qual seja o gênero ou intenção literária que ele esteja interpretando. Na verdade, ele aprendeu ao longo dos tempos a desenhar o seu próprio desenho. Em outras palavras: ele não apreende o texto para depois aprender o desenho adequado àquele texto.
Venho ilustrando, em 30 anos de carreira, um universo diversificado de textos, que vão desde Christopher Marlowe (Fausto), Victor Hugo (Pecopin), Michael Ende (Momo) a autores nacionais, como – nomeando apenas alguns – Ana Maria Machado, Rogério Andrade Barbosa, Luciana Savaget, e um dos maiores escritores brasileiros de literatura para crianças, que foi Walmir Ayala. Diante destes autores, como poderia ter um conceito e imagem unificados no ato de ilustrar escritores tão diferentes, tão contraditórios entre si?
Acho este distanciamento fundamental. Eu diria que, ao ilustrar um livro, eu estou na ilustração, mas eu não sou a ilustração.
Diante de um texto, o ilustrador não é o antes – a forma advém da literatura, um segredo a ser decifrado por imagens. Vejo a ilustração como um gênero de literatura, sentenças construídas através de um alfabeto de signos e símbolos. Com este critério, o ilustrador desenvolve e interpreta o que é ilustrável. E o que é ilustrável nem sempre é o literariamente relevante para o escritor. Complementando este comportamento que orienta o meu trabalho, e, retornando à análise do teatro pela natural aproximação com a literatura, procurei ao longo dos anos estudar esta relação, ou seja, o teatro e a ilustração, apesar de meu interesse pelo cinema, devido ao fato de praticar há muitos anos o cinema de animação em paralelo ao meu trabalho de ilustrador. As convenções e sintaxes do teatro e a relação do ator com o texto levaram a me aproximar mais do teatro do que do cinema, com o intuito de entender o ofício de ilustrar. Logicamente que no cinema de animação a referência básica de meu trabalho é, como não podia deixar de ser, o cinema de seqüência viva.
Passei então a estudar o teatro oriental, principalmente o japonês. Estou me referindo ao teatro Kabuki e ao teatro No, que tanto influenciaram o cineasta russo Sergei Eisenstein e o grande teatrólogo alemão Bertold Bretch. Ao ver e ler a obra destes dois autores, consegui, assim espero, fazer uma ilação com o ato de ilustrar que sempre me preocupava. Seguindo a trilha de Stanislavski, entendo que o ilustrador não deva ser tomado, possuído por assim dizer, pelo texto, quase como um processo de imersão e catarse. Não assimilo o significado de distanciamento como frieza e alheamento, assim como não vejo a ilustração como tempestade de paixões à maneira do Romantismo, e, muito menos, uma linguagem autista.
Acredito que a elaboração distanciada e crítica do texto tornaria mais real e fiel a literatura, o meu trabalho de ilustrador. Para tanto, seria incoerente o estilo, algo preexistente e previsível. Uma imagem prêt-à-porter. A veracidade não estaria na constância das soluções, e sim na própria contradição das soluções encontradas para cada texto. Sendo cada escritor um estilo diferenciado, o ideal será – e esta tem sido a minha constante procura – nada existir antes em termos de imagem, e muito menos depois. Em outras palavras, o ideal seria que a solução visual ao criarmos um livro não fosse repetível.
Curiosamente, este processo de trabalho – apesar de se relacionar com uma linguagem essencialmente figurativa como é a ilustração – poderia no entanto ser definido como o aqui e agora, que é uma premissa básica da arte abstrata.
Um bom exemplo a ser citado nesta direção, ou seja, da diferença entre abordagem e estilo, é o livro Tapete Mágico, que ilustrei, de nossa grande escritora Ana Maria Machado. Os quatro contos narrados pela autora possuem temas e assuntos diferentes. O que determinou, neste caso, as quatro soluções gráficas encontradas para o livro não foi o estilo de escrever da autora, e sim o assunto e o tema.
Mas este comportamento que adotei depende do livro, depende até da palavra física do escritor. Por exemplo, em outros livros procurei concentrar a pesquisa formal diretamente no modo e na forma plástica como o escritor escreve. Eu chamaria este processo de lítero-visual. Cito como referência o livro Língua de Trapos, de Adriana Lisboa, que recentemente ilustrei. A maneira delicada, redonda e sinuosa como escreve esta jovem e talentosa poeta inspirou-me a procurar soluções em forma de volutas. Em alguns casos, procuro me afastar do assunto ou do tema do livro, e isto foi o que ocorreu ao ilustrar a citada obra, tanto assim que nas páginas 18 e 19 percebi, ao analisar o texto, que a poeta utilizava 29 vezes a letra O. Tal fato me orientou, ao criar a ilustração, a um outro tipo de fidelidade plástica ao texto. Usei formas circulares que seriam, em termos gráficos, um sucedâneo do som obtido pela poética dos O utilizados pela escritora.
Estas relações palavra-som e imagem-texto são um exemplo que nos remonta ao livro Songs of Innocence, de William Blake, de assumida influência em meu trabalho. Nas ilustrações de Língua de Trapos seria impossível alcançar estas deduções e descobertas, extraídas da relação texto e imagem, já de posse de um estilo prévio.
Um outro exemplo desta relação em que um estilo previamente solucionado, no meu entendimento, seria impossível interpretar, é o caso do livro que ilustrei em 1983, chamado Viva Jacaré. Sua autora é Cora Rónai, que possui um estilo lírico no início do livro, mordaz e trágico no fim. Neste trabalho, há dois aspectos que pretendo destacar como abordagem de texto. Primeiro, é o fato de o livro mudar de solução plástica (não quero usar a palavra estilo) à medida em que as palavras se tornam graves no texto. Ainda neste sentido de abordagem, nas páginas 12 e 13, separei as palavras, até mesmo as silabas, e as ilustrei. A intenção era interpretar visualmente a beleza sonora do idioma português no exato momento em que a escritora narra a felicidade do despertar do jacaré, em seu habitat natural.
Acredito, e isto tem sido o fundamento de meu trabalho, que a fidelidade ao texto não está no culto ou no estilo deificado do ilustrador, e sim na impessoalidade sincera e profissional da procura da verdade de cada palavra, de cada frase, de cada sílaba, de cada letra do escritor.
O que pretendo, diante de um texto para ilustrar, não é ser mais que o escritor, é apenas não ser uma extensão dele em forma de imagens. Por outro lado tenho consciência de que nem tudo que a literatura nos diz possui um corpo físico. Ou seja, nem tudo pode ser ilustrado. Existem momentos em que a abstração do texto chega em tal estado – não estágio – que qualquer imagem seria vulgarizá-lo. Em contrapartida, é comum a expressão textual ficar aquém da transcendência de certas imagens – qualquer palavra seria supérflua para explicá-la. Em um texto, nem tudo se representa e nem todas as imagens se explicam por palavras.
Rui de Oliveira.
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